Friday, June 23, 2006

O Jardim III

As flores escorrem dos cimos das árvores com os raios de sol.
O pólen torna o ar entre as árvores mais espesso e dá forma aos raios de luz.
Insectos preciosos acompanham a descida das flores com estranhas danças.
O pequeno verme arrasta-se no chão perdido.
Fotografam-se gatos e amantes em posições ridículas.
Os sons dos pássaros fazem diagonais entre o arvoredo.
As gralhas preferem os ciprestes, os rouxinóis serem invisíveis como eu.
E sempre o som dos barcos que nunca vi e que não sei porquê sinto que partem.
Jornais abertos e prontos a levantar voo das mãos de leitores descuidados.
"Amo-te" – diz a árvore. Coração trespassado pela flecha de Cúpido, gotas de amor que escorrem, seiva derramada pela árvore que cresceu acima do amor escrito no seu tronco.
As pessoas vão à fonte onde estamos proibidos de beber e fazem a água correr e salpicam-se e contentes vão-se embora com a minha sede.
Um homenzinho fardado atravessa o jardim com uma metralhadora no ombro e com o olhar fuzila todo o verde do jardim.
Pergunto-me: quanto tempo seria preciso para que as flores que caem das árvores me cobrissem enquanto escrevo?

Tuesday, June 20, 2006

O Jardim II

Outra senhora a vender rosas, rosas vermelhas e dentes doirados.
Quatro senhoras de lenço na cabeça avançam de braços dados.
O chá passou demasiado depressa para que a minha voz o conseguisse alcançar.
Uma menina irrita-se com a falta de compreensão do irmão mais novo. O menino responde com palavras que não correspondem às questões que lhe são feitas.
Porque não deixam os miúdos arrancar as flores se os sorrisos também florescem?

Thursday, June 08, 2006

O Jardim I

Tantas flores como mãos dadas.
A vendedora de rosas traz a trindade ao jardim.
Chão regado e sombra.
Perfume não identificado e faces escondidas.
O mundo feito uma pequena tira- pequeno ecrã para tantos desejos.
As gralhas grasnam ou talvez gravações de gralhas soem.
Pessoas estranhamente apressadas neste Domingo tão solarengo.
Fotografias de estátuas- estátuas repetidas.
Vendedores de espigas de milho assadas, um gato deitado ao sol com os olhos semicerrados.
As sirenes dos navios que partem do jardim ao longe.
Raparigas de braços dados buscam o nosso olhar e o nosso olhar busca o olhar dessas raparigas e ficam assim os olhares enleados no meio das árvores.
Os pardais aproveitam os restos dos lanches dos casais para fazerem ninhos que nunca ninguém vai descobrir no palácio dum príncipe que nunca existiu.
O menino começa a arrancar as flores do jardim.
Folhas e sementes descem do tecto que nos cobre.
Outra flor arrancada, desta vez azul.
Nos ramos mais altos papagaios verdes. Descem através dos ramos até chegarem a um ponto em que as pessoas param para os olhar admiradas.
Um bocejo, o banco de madeira agitado pelas pancadas irrequietas do amante que espera já sem paciência.
Pedaços de pão atirados às minhas costas por seres invisíveis.
O rosto cansado pela espera.
O amante levanta-se de repente e quase salta.
Verde escuro, verde claro- linguagem da folha que caí da árvore.
Sóis desenhados na calçada pela sombra e pela luz.
Eclipses das pétalas das flores mais rasteiras.
Bancos cobiçados pelos casais que querem parar e descansar ou talvez estarem mais próximos da desejada horizontalidade.
Uma criança vem perguntar-me sobre que escrevo eu- "Sobre o jardim." – A criança riu-se, ria sem parar: Porque quereria alguém escrever sobre o jardim?