Sunday, August 26, 2007

A Metáfora II

-Não discutas o invisível antes de o veres! – Disse o personagem estranho àquele lugar e a Lurmesh.
Lurmesh olhou o senhor, pegou num seixo redondo e estreito e lançou-o à água. A pedra deu vários saltinhos na água e afundou-se.
Então Lurmesh respondeu:
-Não sei que invisível é esse de que fala, não sei onde quer chegar com a sua conversa!
-Era precisamente aí que eu queria chegar!
As cigarras abrandaram o seu cantar por uns segundos. Um dos ramos tocou-lhe a face ao de leve. Fechou os olhos. Quando os voltou a abrir o homem estava sentado a seu lado.
-Não passas dum falsificador de poemas que julga viver na rua do imaginário!
-Mas era um conto o que escrevia!
-Armadilhas e metáforas!
-Não sei do que está a falar!
-Já tinha dito, não discutas o invisível antes de o veres!


Na outra margem uma manada de vacas descia até à margem, enfiava as patas na água e bebia. Lurmesh sentia o suor correr-lhe pela face e na sua mente um zumbido de insectos dava-lhe a sensação de ser um formigueiro inundado em que formigas tentavam a todo o custo salvar as larvas.
Ouvi então a sua voz:
-Então? Novamente perdido nos pensamentos?
-Descobri hoje que tenho em mim um velho crítico disposto a discutir as minhas novas ideias!
-E um beijo? –Respondeu-lhe Metáfora enquanto se sentava ao seu lado.

Monday, June 04, 2007

A Metáfora I

À beira daquele lago, que na verdade era um rio, Lurmesh repousava. Os ramos de salgueiro formavam uma espécie de cortina verde, que agitada pelo vento filtrava o verde em mil tons. Era música o que via se lhe acrescentasse o saltar de infinitos gafanhotos, o rápido vibrar das asas de pequenas moscas e de quando em quando o saltar dum peixe dentro da linha do seu olhar. Aquele mundo aparentemente tão quieto vibrava vigorosamente. Salto de rã, voo de garça.

Um dia senti alguém tocar-me, senti como se fosse uma pedra na mão de um gigante.
A vista de Lurmesh perdia-se na superfície do lago e flutuava lado a lado com algumas memórias que lhe surgiam ali aparentemente sem razão.
O gigante lançava-o nas memórias e assim ia saltando de passado em passado, cada vez que tocava a superfície.

Nas nuvens deambulava um rebanho de antiquíssimas criaturas pastando o azul. Nos dentes asas de avião misturadas com sol.

Esperava pela Metáfora quando uma voz se ouviu nas suas costas:
-Creio que há aqui um abuso da metáfora, consigo adivinhar no teu sossego, na tua preguiça, esse abuso!
-Não és o primeiro a dizê-lo. - Respondeu virando-se para a voz.
Lurmesh olhava com espanto aquele senhor. Porque falaria de Metáfora? Que abusos seriam esses de que falava? O homem, alto e magro, parecia-lhe uma árvore e não deixou de sorrir ao pensá-lo. “ Uma árvore velha, um Inverno no Verão.”
-Venho aqui para o impedir de voltar à metáfora. A metáfora caiu em desuso…
-Nas margens deste lago, longe dos usos e desusos, a metáfora tem o seu lugar.
Uma garça branca poisava num dos ramos do chorão. Parecia-se com um leve saco de algodão escapado dum estojo de primeiros socorros.

Tuesday, March 13, 2007

Quarto de caçadores VIII

Entretanto esqueci-me de contar os sucessos que me levaram a sair da gigante criatura.
Acordei uma manhã, segundo me pareceu, mais digerido que nunca. Perdi desta vez mais de três minutos a lavar a cara.
Depois de lavar a cara voltei-me para a cama e vi sobre a almofada um maço de tabaco. Em letras grandes dizia: “Fumar Mata”. Ainda pensei na hipótese de alguém ou algo me querer envenenar, mas não sei porquê acabei por afastar esse pensamento. Fumei então um cigarro atrás do outro enquanto as paredes do quarto mudavam do rosa para um estranho cinzento. As paredes começaram a contrair-se, uma janela abriu-se e quando dei por estava numa esplanada quase deitado a fumar narguilé e a beber chá de maçã. À minha frente a água do rio, ao meu lado O Grande rio.
Consegui voltar áquele lugar mais tarde. Dizia Hotel do Rio à entrada, numa placa de plástico queimada pelo sol. Era estranho olhar o que antes tinha sido uma espécie de monstro e ver agora apenas um velho edifício. Ali estava a recepção, as escadas, o chuveiro e depois de atravessar o corredor, que continuava a parecer infinito, a porta do quarto, desta vez com um número, o oito.

Tuesday, February 06, 2007

Quarto de caçadores VII

Senti uma tensão no ar naquele primeiro dia fora. Na verdade a tensão talvez estivesse mais dentro de mim.
Depois do chá e do narguilê com sabor a maçã comecei a andar ao acaso na esperança de encontrar alguém com quem pudesse falar. Encontrei um grupo de turistas e pareceu-me que talvez neles houvesse uma possibilidade de diálogo, nem que fosse sobre o clima. Aproximei-me, falavam inglês o que me animou. Então comecei a falar só que não era inglês o que da minha boca saía. Não sei que língua era, mas turco também não seria. Olharam-me entre o assombro e o medo. Um senhor mais velho, armado em herói de ocasião veio na minha direcção e proferiu umas ameaças para me enxutar. Eu que só queria conversar um pouco encolhi os ombros e disse: “ No problem” , dei meia volta e continuei a minha caminhada. Era tanto o meu desejo de falar e a única coisa que me tinha saído era “No problem”! O que se passaria?
Dirigi-me para a margem do rio e sentei-me numa rocha. Senti que era um pescador. Lançava a linha ao rio e tentava apanhar o meu conhecimento afundado ao lado dos verdadeiros pescadores. As ideias apanhadas eram-me alheias. Eu era alheio a mim próprio enquanto tentava descobrir quem era. Lembrava-me da matemática, das funções que tendiam para o zero e das funções que tendiam para o infinito: sentia-me as duas em simultâneo.

Wednesday, January 10, 2007

Quarto de caçadores VI

Acordei muito bem disposto, a febre parecia ter passado definitivamente e os sonhos durante a noite devem ter sido bons.
Fiz as contas à vida e vi que o dinheiro não ia chegar até ao fim da semana. Mesmo assim a boa disposição não acabou. Que mal me faria não ter o que comer por um par de dias quando o sol e o bom humor estavam comigo?
Desci até a recepção. O rapaz mais novo, o senhor dos dentes amarelos e bigode azul escuro e um terceiro personagem estavam sentados. Convidaram-me a sentar com eles. Consegui entender: família. Eram todos da mesma família mas dentro da família o terceiro personagem parecia revestir-se duma grande importância. Tratavam-no por Baba.
Passada uma hora sem perceber quase nada levantei-me e fui para a rua.
Uma conversa em que não se percebe nada por causa de diferenças de língua é algo que aprecio. De qualquer forma foi uma conversa animada.
Consegui confirmar que não tinha dinheiro. Comi pouco e a seguir bebi um café que me custou o dobro da refeição. Com o café fumei um dos cigarros do maço que me custou três vezes o preço da refeição...

Sunday, December 17, 2006

Quarto de caçadores V

Havia uma coisa que na realidade ia mudando no meu dia-a-dia: “O livro do grande rio” que tinha comigo. Não me lembro onde o tinha comprado, mas tinha-o comigo. Quando o acabava de ler e o recomeçava já não era o mesmo, todos os poemas se tinham transformado, ainda que apenas em pequenos detalhes. Mas esses pequenos detalhes mudavam tudo. Parte essencial do diário era então a anotação das transformações dos poemas.

Enquanto que dentro daquele animal nada mudava nos poemas num dia estava sol, noutro chovia, num dia o rio corria, no outro estava seco, tudo mudava defacto nem que fosse porque num dia uma gota de chuva tivesse atingido o rosto do poeta e no outro um pássaro tivesse cantado por cima do poeta. Que diferença faria a gota de chuva ou o cantar da ave? Para mim era toda a diferença dum dia para o outro e essa diferença tinha que me ser o bastante.

Tuesday, November 28, 2006

Quarto de caçadores IV

O chuveiro estava fixo à parede, toda a divisão era branca e apesar de não ter nenhuma lâmpada tinha uma luz artificial, também ela branca.

A água começou a correr e quando já estava completamente nu consegui ver que só partes do meu corpo tinham a cor do quarto. A água parou, comecei a secar-me e um buraco abriu-se onde antes tinha tomado o banho. Ficou tudo de novo seco.

Voltei ao quarto, as luzes azuis já se tinham acendido no corredor.

No quarto em frente ao meu vivia outra pessoa mas que nunca se deixava ver. Dessa pessoa só conhecia umas sonoras gargalhadas e o som do abrir e fechar da fechadura. Tentei algumas vezes abrir a porta no momento em que ouvia a fechadura do meu vizinho rodar mas sempre em vão, quando eu a abria a minha porta a outra já estava cerrada e as gargalhadas voltavam-se a ouvir. De que se riria?

A partir do dia em que encontrei as escadas para aquela espécie de recepção passei a ir lá de vez em quando na esperança de descobrir que sitio era aquele. Não me valia de nada, a resposta era sempre a mesma desde o primeiro dia.

Um dia, para lutar contra o sono, iniciei a escrita de um diário. Mas que diário podia ser esse?